O procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPMT), Alexandre de Matos Guedes, que atua na área criminal, defendeu, em entrevista ao , o uso de câmeras corporais nas fardas dos policiais militares. Além disso, criticou o ex-comandante da Polícia Militar (PM), Alexandre Mendes, por, segundo ele, influenciar de forma equivocada o governador do Estado.
Guedes destacou que as câmeras corporais contribuem para elucidar crimes e evitar que traficantes presos em flagrante sejam soltos ou inocentados por falta de provas produzidas pela Polícia Militar.
“O ex-comandante da PM era uma das pessoas contrárias ao uso das câmeras corporais. Ele influenciava o governador de maneira equivocada. (...) Como procurador na área criminal, tenho acompanhado diversas situações em que se concede habeas corpus ou absolvições justamente pela ausência de registro do momento da abordagem, da entrada na residência ou da diligência. Sem provas, os juízes acabam absolvendo, principalmente, traficantes", enfatizou Guedes, ao ressaltar a importância das câmeras como instrumento de produção de provas.
Em crítica direta ao governo estadual, Guedes acrescentou: "O Estado diz que valoriza o policial, mas isso não é verdade. Na prática, o Estado trata o policial como se fosse um peão. Um peão sem personalidade, que, se apresentar problemas, é simplesmente substituído”, criticou o procurador.
Além disso, o procurador observou que, especialmente na Polícia Militar, existe uma ideologia que desestimula os policiais a buscar apoio psicológico. Em sua avaliação, os abusos cometidos por policiais poderiam ser reduzidos com um tratamento adequado. “A pessoa que procura assistência psicológica é considerada fraca. Na prática, esses profissionais são desencorajados a buscar ajuda”, concluiu Guedes.
Confira na íntegra a entrevista
VGN – Na avaliação do senhor, a utilização de câmeras nas fardas dos policiais é necessária ou trata-se de um mero instrumento de perseguição aos policiais, como afirma, por exemplo, o governador Mauro Mendes?
Alexandre de Matos Guedes – Eu acredito que o governador está sendo muito mal assessorado nessa matéria. O governador é um excelente gestor, uma pessoa muito perspicaz, mas entendo que ele está sendo influenciado de maneira equivocada por seus assessores ou pelas pessoas ao seu redor.
As câmeras nas fardas são instrumentos amplamente utilizados no mundo inteiro, especialmente nos Estados Unidos. Lá, existem até programas de reality show baseados exclusivamente em gravações de câmeras corporais policiais. Inclusive, o próprio governador Tarcísio de Freitas reconheceu que se arrependeu da opinião inicial que tinha sobre as câmeras e anunciou que irá implementá-las devido aos abusos policiais registrados.
O governador está sendo mal-orientado, porque as câmeras nas fardas não servem apenas para vigiar os policiais. Elas são ferramentas indispensáveis para garantir e demonstrar a legalidade das abordagens e prisões. Como procurador de Justiça Criminal, acompanho frequentemente situações em que habeas corpus são concedidos ou pessoas são absolvidas justamente pela ausência de registros no momento da abordagem, na entrada em residências ou durante diligências. Sem provas, os juízes acabam absolvendo réus, especialmente traficantes. Precisamos superar a ideia de que as câmeras servem apenas para vigiar os policiais. Claro, elas também têm essa função, sem dúvida alguma. Todo agente do Estado, detentor do monopólio do uso legítimo da força – que utiliza armas, munições, cassetetes – deve ser fiscalizado. Contudo, esse não é o ponto principal: as câmeras são essenciais para a produção de provas.
Vou citar um exemplo: Mato Grosso é o único Estado do país que possui uma lei determinando que todos os treinamentos de bombeiros sejam filmados. E por que isso? Porque, nos últimos anos, pelo menos dois alunos bombeiros faleceram durante esses treinamentos. Ninguém acusa essa medida de ser uma perseguição aos bombeiros. Essas mortes tornaram absolutamente necessária a ampliação da fiscalização nos treinamentos.
VGN – O Governo realizou concurso para as polícias civil, militar e bombeiros. No entanto, não convocou o quantitativo apontado como ideal por especialistas. Apenas na Polícia Militar, há um déficit de 5 mil policiais. No interior, muitas delegacias operam com baixo efetivo nos finais de semana. Na sua avaliação, é possível reduzir os índices de violência com um número tão reduzido de policiais?
Alexandre de Matos Guedes – É claro que é possível, mas o ideal seria aumentar o efetivo. O déficit, entretanto, é ainda maior do que você mencionou. Você está falando no déficit nominal, mas há um déficit real ainda mais preocupante, agravado pelo elevado número de policiais em licença médica. Muitas dessas licenças poderiam ser evitadas se houvesse uma política pública adequada de suporte e amparo aos policiais.
O problema central é a ausência de uma política pública eficiente de apoio aos agentes de segurança, especialmente no que diz respeito à saúde mental. Estou me referindo a todas as categorias: Polícia Militar, Polícia Civil, policiais penais e agentes socioeducativos. Não há uma política de saúde mental estruturada e eficaz para esses profissionais.
Quando eu era promotor, ingressei com uma ação civil pública para que o Estado desenvolvesse uma política pública de assistência à saúde mental dos policiais. Além do déficit numérico que você citou, um número significativo de agentes está em licença médica devido a problemas relacionados ao sofrimento mental. Não existe qualquer mecanismo institucional de apoio adequado para esses profissionais.
O que o Governo do Estado alega? Diz que oferece assistência, desde que o policial a procure. No entanto, a ideologia predominante, especialmente na Polícia Militar, rotula como “fraco” aquele que busca ajuda psicológica. Na prática, isso desestimula os policiais a procurarem suporte. Como consequência, temos um déficit funcional ainda maior, agravado por doenças e problemas de saúde mental não tratados. Isso, por sua vez, contribui para o aumento dos abusos policiais de que tanto falamos.
Outro reflexo grave dessa situação é o elevado índice de suicídios entre policiais, diretamente ligado à falta de apoio e de políticas de prevenção. Além do déficit numérico, o Estado precisa reconhecer que não dispõe de uma política efetiva de amparo aos policiais, especialmente no que se refere à saúde mental. Essa negligência só agrava o problema.
Para ilustrar, na ação civil pública que mencionei, o Estado defendeu – e o Tribunal de Justiça concordou – que não era necessário implementar uma política preventiva de saúde mental para os policiais. O Estado insiste em afirmar que valoriza os policiais, mas, na prática, isso não ocorre. Os trata como peões, como peças descartáveis. Se um policial apresenta problemas, simplesmente é afastado e substituído. Porém, a realidade não é tão simples, e o déficit só aumenta.
Portanto, é possível adotar uma política de segurança eficiente, mesmo com o déficit nominal, mas é fundamental reconhecer que o problema é muito mais profundo. O déficit real, somado à falta de políticas de suporte e à negligência em relação à saúde mental dos policiais, torna a situação muito mais grave do que aparenta.
VGN – Qual a sua leitura sobre como ocorreu a saída do Coronel Mendes? Ficou a impressão de que ele seria o problema da segurança no Estado, ou trata-se de uma mudança normal?
Alexandre de Matos Guedes – Toda troca de comando na Polícia Militar é algo natural. No entanto, o ex-comandante, em diversas ocasiões, agiu mais como um presidente de sindicato policial do que como comandante da Polícia Militar. Vou dar um exemplo: quando o Ministério Público denunciou uma série de policiais por integrarem um grupo de extermínio, o ex-comandante foi à imprensa criticar duramente o Ministério Público, afirmando que a denúncia não correspondia aos fatos.
Ora, o comandante da PM precisa adotar uma postura neutra e isenta, principalmente porque ele será o responsável final por julgar os processos administrativos envolvendo os policiais. O comandante não pode atuar como um líder sindical, defendendo corporativamente os subordinados.
Além disso, o ex-comandante era um dos principais opositores à adoção de câmeras corporais, chegando a influenciar o governador de forma equivocada nesse tema. Ele também não priorizava a aquisição de armas não letais, como tasers, e outros equipamentos que poderiam evitar mortes e, ao mesmo tempo, garantir a proteção dos policiais.
Não posso afirmar que o comando da PM era o principal problema da segurança pública no Estado, mas ele teve atitudes que demonstraram inadequação em diversas situações. De qualquer forma, considero a troca de comando na PM uma situação normal e rotineira.
VGN – São frequentes os casos e operações policiais que revelam a entrada de celulares e drogas nos presídios de Mato Grosso. A mais recente, realizada pelo Gaeco, investigou a associação de policiais penais. Como o senhor avalia essa categoria? Seria necessária uma espécie de "reforma" ou o formato atual é suficiente para garantir a segurança nos presídios?
Alexandre de Matos Guedes – A instituição do policial penal é algo muito recente, o que torna difícil afirmar, neste momento, se ela está adequada ou se precisa de reformulação. Contudo, é importante destacar que a função da polícia penal deve ir além do antigo papel dos agentes penitenciários, limitados à administração dos presídios. A ideia de uma polícia penal, por si só, não é ruim. Porém, ainda é cedo para avaliar se a estrutura atual atende plenamente às demandas de segurança.
Quanto ao problema da entrada de celulares e outros objetos ilícitos nos presídios, há uma percepção comum de que os visitantes são os responsáveis por introduzir esses itens. No entanto, acredito que essa não seja a principal origem. A maioria desses materiais entra por outros meios. Se há envolvimento de policiais penais ou não, isso precisa ser apurado rigorosamente nos inquéritos. Independentemente disso, a questão é grave e requer uma solução efetiva.
Uma medida indispensável seria a instalação de bloqueadores de sinal de celular nos presídios. É uma solução direta e eficaz, que exige coragem política para ser implementada. Se a intenção é realmente adotar uma postura de "tolerância zero", essa tecnologia deve ser aplicada imediatamente, sem concessões.
VGN – O que o senhor acha da criação da nova Secretaria de Justiça, recentemente instituída pelo Governo do Estado?
Alexandre de Matos Guedes – A criação da nova secretaria foi uma medida acertada. O problema foi, justamente, a extinção anterior da secretaria. Existe um mantra neoliberal, muito comum entre os chamados "economistas de planilha", que busca reduzir gastos de qualquer maneira. Essa lógica de corte indiscriminado de despesas é a principal causa das precariedades nas políticas públicas de segurança, saúde e diversas outras áreas.
O montante destinado à criação de cargos comissionados na secretaria é irrisório quando comparado ao orçamento total do Estado. Ademais, é fundamental que os profissionais dessa área recebam uma remuneração condizente com a complexidade e o risco de suas funções, considerando que estão lidando com o crime organizado. Por isso, sou plenamente favorável à recriação da secretaria. Ressalto, no entanto, que considero lamentável sua extinção anterior, baseada em uma falsa premissa de "enxugar a máquina pública" e outros discursos semelhantes.
As secretarias de Estado são órgãos essenciais, pois concentram e gerenciam políticas públicas. No caso da Secretaria de Justiça, sua atuação na política penitenciária e no controle de facções criminosas é de suma importância. Além disso, destaco a urgência da implementação de bloqueadores de sinal nos presídios, uma medida prática e necessária.
A questão não é apenas impedir a entrada de aparelhos nos presídios, mas, sobretudo, garantir que eles não possam funcionar. É nesse sentido que reitero meu apoio às ações da nova secretaria, pois enfrentamos um momento que exige medidas de tolerância zero.
VGN – Uma das atribuições da Secretaria de Justiça é administrar a política de atendimento às medidas socioeducativas, com o objetivo de proporcionar ao adolescente em conflito com a lei meios efetivos para sua ressocialização. Qual foi o encaminhamento do Ministério Público Estadual (MPE) para contribuir com a recuperação desses jovens? O que é necessário para evitar que sejam cooptados por facções criminosas?
Alexandre de Matos Guedes – A questão dos adolescentes em conflito com a lei é mais da alçada do Dr. Paulo Prato. Contudo, o que posso afirmar é o seguinte: atualmente, os adolescentes não precisam estar internados em um Complexo Socioeducativo para terem contato com as facções criminosas. Essas facções estão presentes nos bairros, nas comunidades. Assim, o contato inicial ocorre muitas vezes em suas próprias casas ou nas ruas, no convívio diário com as pessoas ao redor.
É evidente que, ao serem colocados em um Complexo Socioeducativo, esses jovens podem estabelecer um contato ainda mais direto com membros de facções. No entanto, esse não é o único problema – e talvez nem seja o mais grave. O verdadeiro desafio está no fato de que esses adolescentes já são alvos de contato e cooptação dentro de suas próprias comunidades, desde os bairros onde vivem.
Portanto, o enfrentamento dessa questão exige estratégias que vão além do sistema socioeducativo, incluindo políticas públicas de prevenção e ações efetivas nos bairros e comunidades onde as facções exercem influência direta sobre os jovens.
VGN – Na sua avaliação, o aumento dos crimes ocorre porque as leis são frouxas? Ou acredita que se trata de um conjunto de forças necessárias para combatê-los?
Alexandre de Matos Guedes – Depende de quais leis estamos falando. As leis relativas a furto, roubo, feminicídio e homicídio, por exemplo, preveem penas altas. Da mesma forma, crimes como estupro e violência sexual também possuem penas rigorosas. Por outro lado, os crimes de colarinho branco, como corrupção, têm penas mais brandas, muitas vezes ridículas em comparação com a gravidade desses delitos. Sonegação fiscal é outro exemplo: as penas são muito leves, e a possibilidade de perdão judicial para esse tipo de crime – que causa um enorme prejuízo à sociedade – é considerável.
Além disso, não é apenas uma questão de frouxidão da lei, mas também da maneira como ela é aplicada. Recentemente, foi amplamente divulgado pela imprensa que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) autorizou que um padre – ou ex-padre – condenado a 41 anos de prisão por abuso sexual contra vulneráveis (crianças e adolescentes) realizasse trabalho externo. Isso é um verdadeiro absurdo! A lei permite? Não, a lei não permite. Com todo o respeito ao Tribunal, a legislação não prevê tal benefício para crimes dessa natureza.
Uma pessoa condenada por crimes tão graves, com uma pena de 41 anos, não deveria ter o direito de trabalhar fora, especialmente considerando que, durante esse trabalho, poderia ter contato com outros adolescentes. As penas não são frouxas para os crimes que mais preocupam a população. O que é frouxo são decisões judiciais inexplicáveis como essa, que citei. Faço essa crítica com todo o respeito, mas decisões como essa geram descrédito na Justiça e aumentam o risco de reincidência.
VGN – O que o senhor diria a um jovem ou cidadão que aceita “favores” de facções, considerando que, nos bairros, a população frequentemente recorre aos membros de facções para recuperar itens furtados ou roubados, em vez de acionar a polícia? O senhor costuma lidar com casos desse tipo?
Alexandre de Matos Guedes – Realmente, os chamados "disciplinas" acabam ocupando o papel que deveria ser do Estado. Devido ao déficit de policiais e a diversas outras circunstâncias, os membros das facções assumem, em algumas comunidades, o papel de autoridade local. Essa autoridade é, muitas vezes, vista como benigna, já que, aparentemente, eles impedem roubos e realizam outras ações que favorecem a comunidade.
No entanto, o que eu diria é: não aceite esse tipo de "favor". Isso não é um favor. Qualquer benefício oferecido pelas facções virá acompanhado, mais cedo ou mais tarde, de um pedido de retribuição, o que pode envolver a prática de atividades ilícitas ou perigosas. Essa dependência gera um vínculo que acaba fortalecendo o poder das facções dentro das comunidades.
VGN – Quais são os riscos de pedir "favores" às facções?
Alexandre de Matos Guedes – Inicialmente, pode parecer algo inofensivo, mas nunca termina por aí. Por exemplo, podem pedir para você guardar algo em casa. Um favor aparentemente simples pode acabar envolvendo a pessoa em situações criminosas.
Suponha que alguém peça ajuda ao "disciplina" de uma facção porque teve uma máquina de lavar roubada. Ele resolve o problema, mas, algum tempo depois, retorna e pede: “Guarde este pacote para mim.” A pessoa, acreditando ser algo inofensivo, aceita. No entanto, o pacote contém drogas. Então, a polícia aparece, apreende a mercadoria e, de repente, a pessoa se vê envolvida em um processo por tráfico de drogas.
O conselho que dou é simples: lembre-se de que todo favor solicitado pelas facções resultará, mais cedo ou mais tarde, em um pedido de retribuição, que pode colocar sua liberdade e segurança em risco.
VGN – "Tolerância Zero" significa liberdade para usar violência nas ações?
Alexandre de Matos Guedes – Não necessariamente. Existem políticas públicas legítimas de segurança denominadas "Tolerância Zero", especialmente nos Estados Unidos. O problema no Brasil é que a Tolerância Zero frequentemente é interpretada como uma licença para arbitrariedades e para o uso indiscriminado da violência.
Por exemplo, tivemos recentemente um caso em São Paulo, onde um policial jogou um homem de uma ponte, de forma completamente injustificada. O homem não tinha qualquer envolvimento ilícito, não portava drogas, absolutamente nada. Foi um ato de pura maldade. Ainda assim, um político chegou a publicar nas redes sociais que seria aceitável "jogar o homem de um penhasco". Espere aí! No mínimo, estamos falando de um cidadão que paga impostos e tem direitos.
O problema com a Tolerância Zero não é a política em si, mas a forma como ela é percebida, tanto pela população em geral quanto pelos próprios agentes de segurança, como se implicasse a autorização para cometer arbitrariedades. Isso não pode ser admitido.
É justamente por isso que ferramentas como as câmeras corporais são tão importantes. Elas permitem que a Tolerância Zero seja implementada de forma legítima e controlada. Nos Estados Unidos, é perfeitamente possível combinar uma política de Tolerância Zero com o uso de câmeras corporais para fiscalizar as ações das autoridades policiais e garantir que sejam conduzidas dentro dos limites legais.
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