O Projeto de Lei 2.159/2021, apelidado de "PL da Devastação" por ambientalistas, promete revolucionar o licenciamento ambiental brasileiro — mas não da forma que os especialistas gostariam. A proposta tem provocado reações contundentes ao sugerir a flexibilização radical dos processos que hoje protegem nossos biomas.
Para a professora Jaçanan Eloisa de Freitas Milani, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o projeto representa um perigoso retrocesso. "Fragiliza etapas fundamentais de análise, participação pública e controle social, indo na contramão dos princípios de precaução e prevenção", alerta a engenheira florestal, doutora pela Universidade Federal do Paraná.
O cerne da polêmica está na proposta de substituir o atual sistema tripartite — que exige Licença Prévia, de Instalação e de Operação — por um modelo simplificado que pode incluir licenciamento automático mediante autodeclaração. Enquanto o modelo atual permite avaliação criteriosa dos riscos ambientais, sociais e econômicos, a nova proposta exporia biomas sensíveis como Cerrado e Amazônia à degradação acelerada.
VGN - O que exatamente muda na legislação ambiental com o PL 2.159/2021 e por que essas mudanças são consideradas um retrocesso?
Jaçanan Eloisa - O Projeto de Lei 2.159/2021 altera fundamentalmente a estrutura e os critérios para aprovação de empreendimentos no Brasil ao propor uma flexibilização do licenciamento ambiental. Ele introduz um regime mais simplificado, ampliando os casos de dispensa e de licenciamento por autodeclaração automática para diversas atividades.
Essa mudança é considerada um retrocesso porque desconsidera décadas de avanço na legislação ambiental, construídas com base em experiências sobre os impactos socioambientais. Ao fragilizar as etapas de análise, participação pública e controle, o PL potencializa riscos de degradação ambiental e violação de direitos, contrariando princípios como o da prevenção e precaução que deveriam nortear a política ambiental - o "In dubio pro natura", que significa "na dúvida, em favor da natureza".
VGN - Quais os principais riscos ambientais que a flexibilização do licenciamento pode gerar, especialmente em biomas como a Amazônia e o Cerrado?
Jaçanan Eloisa - Os riscos são enormes. O modelo trifásico atual - Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO) - é uma ferramenta efetiva para proteção ambiental.
A LP avalia a viabilidade ambiental do projeto, analisando sua localização em relação ao meio físico, biótico e social, definindo condições para prevenir danos irreversíveis. A LI autoriza o início da obra, garantindo implementação das medidas de controle propostas. A LO permite o funcionamento mediante cumprimento das condicionantes e estabelece programas de monitoramento contínuo.
A exclusão ou simplificação significativa deste modelo representa um cenário alarmante, especialmente no contexto de mudanças climáticas e crescente pressão sobre recursos naturais. A falta de avaliação rigorosa abriria portas para degradação acelerada do meio ambiente, com consequências dificilmente reversíveis.
VGN - Na sua visão, quem são os maiores beneficiados com a aprovação desse projeto de lei e por quê?
Jaçanan Eloisa - O principal benefício apontado pelos defensores reside na redução de prazos e exigências para obtenção de licenças. Essa simplificação se traduz em aparente economia de capital e maior agilidade na implementação de empreendimentos - um benefício puramente processual.
No entanto, essa "agilidade" é alcançada a um custo que não deveria ser negociado. As externalidades ambientais e sociais - aumento do desmatamento, poluição de recursos hídricos, perda de biodiversidade e impactos sobre comunidades tradicionais - são transferidas para a sociedade e meio ambiente.
A celeridade do licenciamento é um ponto que precisa ser aprimorado, mas não à custa da natureza e do bem-estar social. Flexibilizar irresponsavelmente não apenas compromete a proteção ambiental, mas pode ferir princípios fundamentais da Constituição Federal, que preconiza o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado para presentes e futuras gerações.
VGN - Como o PL da Devastação pode impactar as populações tradicionais, indígenas e ribeirinhas que vivem em áreas de preservação?
Jaçanan Eloisa - O impacto é profundamente alarmante. Essas comunidades, que dependem diretamente dos recursos naturais e da integridade de seus territórios para subsistência e cultura, seriam as primeiras e mais severamente afetadas. A flexibilização pode levar à aprovação de empreendimentos em suas terras e entornos, fragilizando os mecanismos de proteção que deveriam salvaguardar esses grupos vulneráveis.
VGN - A senhora acredita que o enfraquecimento do licenciamento ambiental compromete o cumprimento dos acordos climáticos internacionais assinados pelo Brasil?
Jaçanan Eloisa - Sim, sem dúvida. O enfraquecimento do processo de licenciamento, ao facilitar o desmatamento e a degradação de ecossistemas, compromete severamente o cumprimento dos acordos climáticos internacionais assinados pelo Brasil, como o Acordo de Paris.
VGN - Qual a importância do licenciamento ambiental para prevenir desastres como os de Mariana e Brumadinho? Esse projeto ignora esses aprendizados?
Jaçanan Eloisa - O papel do licenciamento na prevenção de desastres é essencial, como evidenciado pelas tragédias de Mariana e Brumadinho. Sua função é a análise detalhada dos riscos associados a empreendimentos com alto potencial poluidor ou que empregam substâncias perigosas, exigindo medidas de segurança robustas, planos de emergência eficazes e monitoramento contínuo.
Quando um licenciamento rigoroso é negligenciado, permitindo que projetos com deficiências de segurança operem, aumenta a probabilidade de acidentes de grandes proporções. Essa abordagem irresponsável pavimenta o caminho para repetição de tais eventos, colocando em risco vidas humanas, meio ambiente e patrimônio.
VGN - O projeto prevê o licenciamento automático em alguns casos. O que isso significa na prática e quais os perigos disso?
Jaçanan Eloisa - A previsão de licenciamento automático é um dos aspectos mais preocupantes do PL. Na prática, atividades classificadas como de "baixo risco" - uma categorização que pode ser perigosamente ampliada - seriam aprovadas sem análise prévia detalhada pelos órgãos ambientais. A licença seria emitida com base em mera autodeclaração do empreendedor.
Isso anula a função de precaução associada ao licenciamento ambiental, abrindo precedentes para consequências irreversíveis ao meio ambiente.
VGN - Como os cidadãos comuns e os movimentos sociais podem atuar contra o avanço desse tipo de legislação?
Jaçanan Eloisa - É fundamental que a sociedade se organize utilizando todas as ferramentas disponíveis. Isso inclui disseminação de informações qualificadas por meio de redes sociais, grupos de discussão e mídia independente, garantindo que o debate público seja baseado em dados concretos e análises científicas.
É essencial fomentar a articulação entre diferentes setores: academia, movimentos sociais, povos tradicionais e até setores privados que reconhecem a importância da sustentabilidade. Essa união de forças, com discussões embasadas em evidências científicas, é a chave para construir uma frente robusta e influenciar as decisões que afetam o futuro do meio ambiente.
VGN - Existe algum ponto positivo no PL 2.159/2021 ou é um texto inteiramente prejudicial ao meio ambiente?
Jaçanan Eloisa - Acredito que o projeto falha ao não reconhecer que o modelo atual de licenciamento é um instrumento de segurança jurídica e mitigação de riscos, não um mero entrave. Os custos socioambientais de uma flexibilização irresponsável superam qualquer benefício de curto prazo. Portanto, do ponto de vista da conservação, o texto se configura como majoritariamente prejudicial.
VGN - Que alternativas mais sustentáveis e responsáveis poderiam ser propostas em vez dessa flexibilização do licenciamento?
Jaçanan Eloisa - A solução é investir, não retroceder. A morosidade do licenciamento é uma preocupação válida, mas a resposta não está na flexibilização das normas. A solução mais eficaz reside na ampliação do corpo técnico qualificado nos órgãos ambientais. Mais profissionais especializados significa análises mais ágeis e eficientes, sem comprometer a qualidade ou segurança.
Nosso sistema já possui mecanismos para diferentes níveis de risco e para agilizar processos. Temos modalidades de licenciamento simplificado para empreendimentos de menor potencial poluidor, e algumas atividades são dispensadas de licenciamento.
O PL 2.159/2021 deveria ser desconsiderado. O caminho responsável é o fortalecimento das instituições e aprimoramento dos processos existentes, não a desestruturação de um sistema que, apesar dos desafios, é fundamental para proteger o meio ambiente.
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