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Artigos Terça-feira, 22 de Julho de 2025, 15:01 - A | A

Terça-feira, 22 de Julho de 2025, 15h:01 - A | A

Raul Fortes*

Traz pra cá pra raspá

por Raul Fortes*

__O som ancestral do ganzá, seu caminho da oralidade aos palcos e a força simbólica desse instrumento. _

Não se anuncia, não se impõe, não se explica. Apenas soa. E, quando soa, algo em nós desperta: uma batida ancestral dentro do peito, uma dança escondida no tempo.

É o som que chega forte, mas como quem não quer ser protagonista, sem o qual a música perderia o sentido.

Feito de taquara ou bambu, o ganzá é um grito rítmico da terra. O atrito entre baqueta e instrumento é o caminho de uma cultura que aprendeu a dizer muito com quase nada.

O ganzá tem raízes profundas na herança afro-brasileira, especialmente entre os povos bantos, trazidos da África durante o período escravocrata. Derivado de instrumentos tradicionais, ele atravessou o Atlântico como quem carrega não só um som, mas um modo de viver e resistir. Ao chegar em solo brasileiro, misturou-se à musicalidade indígena e europeia, encontrando eco vivo em Mato Grosso, especialmente nas rodas de siriri e cururu.

No contexto mato-grossense, o ganzá se firmou como um dos instrumentos mais antigos e simbólicos da percussão regional. Um instrumento idiomático, que produz som pela vibração de si mesmo. E talvez por isso seu som nos lembre tanto quem somos. Porque ele vibra com o próprio corpo, como o povo que o criou.

Mas há quem compreenda, com as mãos e com o tempo, o que esse instrumento representa. Como seu Alcides, artesão que confecciona ganzás há várias décadas. Ele conta que a taquara usada precisa ser colhida na lua minguante, para não rachar. E que o osso de costela, usado como baqueta, deve ser limpo com um gesto de silêncio, colocado dentro do formigueiro, onde as formigas retiram toda a carne e impureza até deixar apenas o essencial.

Essa é a paciência de quem sabe que o som não nasce da pressa, mas do respeito. O ganzá não é apenas feito. Ele é cuidado, ritualizado, escutado antes de vibrar.

Ele marca o tempo das danças, costura os compassos, chama a comunidade ao centro. Sua batida constante reforça o sentido coletivo da música tradicional. É o que sustenta os corpos e convida o espírito.

O mais impressionante é que, em sua simplicidade quase despretensiosa, o ganzá é capaz de representar continentes inteiros. Ele carrega a África, carrega a América, carrega os encontros e desencontros que moldaram a nossa história sonora. Um tubo de taquara pode conter séculos de memória, e um pedaço de osso pode fazê-lo soar como um povo inteiro.

E se alguém me pedisse, assim de repente, para ensinar como se toca, eu não diria por meio de compassos, células rítmicas ou qualquer palavra técnica.

Eu responderia com o gesto e a memória:

“Traz pra cá pra raspar, traz pra cá pra raspar, traz pra cá pra raspar, traz pra cá pra raspar.”

Essa frase é ritmo. É célula rítmica falada. Um ensinamento oral que imita o som do próprio instrumento.
É no vai e vem da mão, no olhar de quem escuta e aprende com o escutar. O ganzá não exige força, exige entrega.
É mais sentir do que dominar. É cultura, história e ancestralidade.

E se antes o ganzá era presença quase invisível nas rodas, agora, em tempos contemporâneos, vê-lo em cima do palco, nas grandes apresentações de siriri e rasqueado pelo mundo afora, é um orgulho imenso. É nobre.

O que era chão virou cena. O que era bastidor virou destaque. E o que era tradição viva continua sendo, só que agora sob os refletores, com o reconhecimento que merece.

Quando ele soa, a vida se ajeita no compasso.

E, no fim da roda, depois da dança e do canto, ele segue ali, discreto, sozinho, como quem carrega um segredo antigo demais para ser dito em um século só.

E talvez, um dia, com um ganzá nas mãos, ainda nos contem como tudo começou…

Mas isso é uma outra história.

*Texto dedicado a Paulo Taques, percussionista e entusiasta do ganzá. Que suas mãos continuem espalhando a beleza desse instrumento onde as palavras não alcançam.

 

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