Por Angelo Silva de Oliveira*
De tempos em tempos, episódios vivenciados em ambientes públicos nos obrigam a refletir sobre o que temos priorizado como sociedade — e, talvez mais importante, sobre o que estamos deixando de priorizar. Recentemente, uma dessas oportunidades de reflexão surgiu a partir de dois acontecimentos distintos, mas que dialogam entre si de forma surpreendente: a publicação de uma carta aberta de elevado interesse público, assinada pela auditora aposentada do TCU e ativista do controle social, Elda Mariza Valim Fim, e a polêmica gerada pelo uso do pronome “todes” por uma professora doutora durante uma conferência de saúde pública.
Ambos os fatos chamaram atenção. Mas é justo perguntar: qual deles deveria ocupar o centro do debate público? Estamos focando no que realmente importa?
A CARTA QUE MERECE SER LIDA — E LEVADA A SÉRIO
Com mais de 30 anos de atuação reconhecida no combate à corrupção e na defesa da boa governança, Elda Valim Fim apresentou, em sua carta aberta, dados oficiais que revelam uma realidade preocupante: valores expressivos destinados à saúde pública, em especial à Média e Alta Complexidade (MAC), vêm sendo acumulados há anos em contas estaduais, mesmo diante do aumento contínuo da fila de espera por exames, consultas especializadas e cirurgias.
Segundo a carta, apenas em uma das contas do Fundo Estadual de Saúde, o saldo ultrapassava R$ 329 milhões, conforme dados do próprio Portal da Transparência do Fundo Nacional de Saúde. Ao mesmo tempo, a demanda não atendida em um único ano já somava mais de 213 mil exames e 188 mil consultas. E isso apenas considerando os dados oficiais disponíveis.
A provocação feita pela autora é direta: como é possível haver tantos recursos parados enquanto milhares de cidadãos sofrem nas filas do SUS? Quais mecanismos estão impedindo o uso eficaz desses valores? Será falta de planejamento, ausência de metas claras ou simples inércia administrativa?
Essas perguntas não apontam culpados. Mas apontam responsabilidades — e exigem respostas de gestores públicos, conselhos de saúde e da própria sociedade.
O “TODES” E O DESVIO DO FOCO
No mesmo espaço em que se esperava discutir soluções para a saúde pública, a fala de uma professora que utilizou o termo “todes” acabou se tornando o assunto mais comentado. Em vez de concentrar esforços na análise de propostas, prioridades orçamentárias e ações resolutivas, a atenção desviou-se para uma palavra.
Não se trata aqui de discutir se “todes” agrada a todos ou não. Trata-se de reconhecer que nenhuma palavra, por si só, tem o poder de causar o tipo de sofrimento que a ineficiência na saúde pública causa diariamente.
A escolha de um pronome pode até ser debatida — mas jamais censurada. E certamente não deveria desviar o foco do que mais importa: as vidas que dependem de acesso oportuno e digno ao sistema público de saúde.
A LÍNGUA, A LEI E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Vale lembrar que nenhuma lei brasileira proíbe o uso de termos como “todes”, "xômano" ou outras expressões populares. A língua é viva e plural, e se transforma com o tempo e com o uso da sociedade.
Em Cuiabá e no interior do Mato Grosso, por exemplo, é comum ouvir expressões como: "Vôte", usada para expressar repulsa, aversão ou espanto; "pau-rodado", metáfora que faz menção a pessoas que vieram de fora da capital mato-grossense; "quebra-torto", comer uma comida reforçada no desjejum; “agora o quequeesse”, espanto; “malemá”, mais ou menos; ou "de tchapa e cruz", cuiabano legítimo que nasceu, vive e pretende morrer na terra natal — nenhuma delas registrada na norma culta, mas todas compreendidas e aceitas no cotidiano.
Essas expressões não são erros, mas formas legítimas de comunicação — parte da identidade cultural local.
E a Constituição Federal garante, em seu artigo 5º, que é livre a manifestação do pensamento e a expressão da atividade intelectual e de comunicação, independentemente de censura. Mais do que isso, o princípio da legalidade estabelece que nenhum agente público pode restringir direitos sem amparo legal expresso. Ou seja, se não há lei que proíba determinada palavra ou expressão, sua proibição por uma autoridade constitui abuso de poder — e fere o próprio juramento feito por todo agente público ao tomar posse: respeitar e fazer cumprir a Constituição.
O QUE DEVE SER PRIORIDADE?
Diante disso, a pergunta que se impõe é: em que tipo de debate queremos investir nossa energia como sociedade? É mais urgente corrigir o pronome de uma saudação ou corrigir os caminhos da gestão pública da saúde? Devemos vigiar palavras — ou vigiar os dados que mostram onde o dinheiro público está (ou não está) sendo aplicado?
A carta de Elda nos convida a focar no essencial: como usar os recursos já existentes para garantir atendimento ágil, eficiente e humano à população. Como cumprir as metas pactuadas nos Termos de Ajustamento de Conduta. Como diminuir a judicialização. Como salvar vidas com os recursos que já estão disponíveis, mas ainda não foram mobilizados.
QUE ESTA REFLEXÃO SE TORNE UM COMPROMISSO
Em vez de censurar expressões populares ou travar disputas sobre linguagem, que tal investirmos em um debate público mais profundo, centrado no interesse coletivo?
O papel de servidores, secretários e gestores é garantir que o cidadão receba atendimento digno, com base nos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A população espera — e merece — mais do que vigilância sobre palavras. Espera ação concreta, metas cumpridas e um SUS que funcione de verdade.
“Todes” não mata. O que mata é o descumprimento de metas, a negligência com dados, a não utilização de recursos disponíveis e a omissão diante do sofrimento humano.
A carta aberta de Elda Valim Fim é mais que uma denúncia: é um chamado à responsabilidade, à transparência e à ação pública. Que saibamos ouvi-lo com maturidade e compromisso.
*Angelo Silva de Oliveira é cidadão brasileiro, mestre em Administração Pública (UFMS), especialista em Gestão Pública Municipal (UNEMAT) e em Organização Socioeconômica (UFMT), graduado em Administração (UFMT) e auditor interno NBR ISO 9001:2015.
Siga o Instagram do VGN: (CLIQUE AQUI).
Participe do Canal do VGN e fique bem informado: (CLIQUE AQUI).