Por Valdiney de Arruda*
Lembro-me vividamente do meu primeiro dia na escola. O cheiro do uniforme novo, a sala de aula cheia de rostos desconhecidos, a mistura de medo, descobertas e um entusiasmo contido. Aquele palco, onde as primeiras palavras e números eram aprendidos, foi também o cenário onde, para muitos, se manifestaram as primeiras e sutis dinâmicas de hostilidade em grupo. Essa sensação de ser alvo de uma “brincadeira” que não era brincadeira, ou de uma exclusão inexplicável, tem um nome. E a história de como esse fenômeno foi desvendado é um fascinante mergulho na psicologia humana e animal.
Para entender a raiz desse fenômeno, precisamos voltar à década de 1960. Foi o zoólogo austríaco Konrad Lorenz, o mesmo que estudava o comportamento de patos e gansos, quem cunhou o termo “mobbing”. Ele observou que, no reino animal, um grupo de aves ou mamíferos se unia para atacar e isolar um indivíduo que consideravam uma ameaça. Era uma estratégia de defesa coletiva, um “ataque de multidão” (mob em inglês) para proteger o território ou o grupo.
A virada para o comportamento humano veio no início dos anos 1970, pelas mãos do psicólogo sueco Peter-Paul Heinemann. Ele foi pioneiro ao transpor o conceito de mobbing para o ambiente escolar. Em suas pesquisas com crianças, Heinemann identificou hostilidades grupais sistemáticas contra um aluno. Foi ali, nos corredores das escolas, que começamos a entender como a exclusão e as agressões repetidas, mesmo sem violência física, abalam profundamente o bem-estar emocional e social.
Mas o mobbing não ficou restrito aos pátios escolares. Na década de 1980, o médico e psicólogo sueco Heinz Leymann ampliou esses conceitos para o ambiente organizacional. Leymann descreveu o mobbing no trabalho como um processo de violência psicológica prolongada, muitas vezes invisível, mas respaldada por estruturas institucionais. Foi ele quem desenvolveu o LIPT — um inventário que identifica 45 comportamentos abusivos recorrentes, como silenciamento, ridicularização e isolamento.
A Europa dos anos 1990 viu o estudo do mobbing se consolidar com pesquisadores como o italiano Harald Ege, que diferenciou o fenômeno do estresse e burnout, enfatizando a intencionalidade destrutiva. Nomes como Dieter Zapf (Alemanha), Helge Hoel (Inglaterra) e Ståle Einarsen (Noruega) aprimoraram instrumentos de mensuração, como o NAQ (Negative Acts Questionnaire), validado inclusive no Brasil para a identificação de atos de assedio entre profissionais de enfermagem.
A grande virada conceitual, especialmente para o público geral, veio em 1998 com a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen. Sua obra “Le Harcèlement Moral” (O Assédio Moral) destacou o assédio como uma violência perversa, sutil e progressiva, livre de agressão física direta, mas profundamente destrutiva. Para Hirigoyen, são críticas sistemáticas, exclusões e manipulações que corroem a autoestima e a saúde mental da vítima, um verdadeiro “psicoterror” que se instala no dia a dia.
No Brasil, a partir dos anos 2000, o termo assédio moral ganhou força, impulsionado pela tradução da obra de Hirigoyen e pela mobilização de sindicatos, acadêmicos e operadores do Direito. Leis estaduais e municipais passaram a tipificar práticas abusivas, e a Justiça do Trabalho reconheceu ações por dano moral. Hoje, o assédio moral é encarado como um grave problema de saúde pública e uma violação de direitos fundamentais no trabalho.
Essa jornada histórica nos mostra que o assédio não é um fenômeno novo, mas nossa compreensão sobre ele amadureceu. De um comportamento animal de defesa a uma violência psicológica sutil nas escolas e, finalmente, a uma perversão organizacional com impactos devastadores na vida e na produtividade. Sua compreensão exige um olhar multidisciplinar – jurídico, psiquiátrico, sociológico e organizacional.
E é essa compreensão aprofundada que nos permite agir. A nova NR-5, por exemplo, ao incluir explicitamente a prevenção e o combate ao assédio na CIPA, não é apenas uma lei; é um convite à ação estratégica. Ela nos empodera a reconhecer os sinais, a intervir e a construir ambientes onde o respeito e a segurança psicológica sejam a norma, e não a exceção.
A história do mobbing e do assédio moral é um lembrete de que, para transformar o futuro das relações seja pessoal ou no trabalho, precisamos primeiro entender o passado e o presente das relações humanas. E você, está pronto para desvendar essas sombras e construir um ambiente mais saudável?
*Valdiney de Arruda é Auditor-Fiscal do Trabalho, Especialista em Políticas Pública e Meio Ambiente, MBA em ESG e pesquisador em Neurociência e Comunicação Não Violenta, integrando legislação, psicologia e gestão estratégica, atua a 29 anos na Promoção de Ambiente Saudável e Sustentável.
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