por Leônidas de Oliveira*
Enquanto o mundo assiste ao início de um conclave, ressurge uma pergunta fundamental: o que restou do rito na vida moderna?
No último domingo (5), o Vaticano encerrou os nove dias de luto oficial pela morte do Papa Francisco. A data foi marcada por uma missa em homenagem ao pontífice argentino. Conhecido como Novendial, o período de luto faz parte do protocolo tradicional da Igreja Católica. O próximo papa será eleito em um conclave, que começou nesta quarta-feira (7), na Capela Sistina, no Vaticano.
Quando se inicia um conclave, a humanidade assiste à permanência cerimonial de uma antiguidade viva. O fechamento das portas da Capela Sistina, acompanhado do brado “Extra omnes”, não é apenas protocolo: é a instauração de um tempo outro – um tempo sagrado, fora do fluxo acelerado da história. Ao eleger seu sumo pontífice, a Igreja revive séculos de tradição, símbolo e rito. Ali, a escolha não se reduz à técnica: consagra-se no silêncio, na repetição ritual, na fumaça que sobe como uma linguagem do mistério.
Essa liturgia não é apenas religiosa: é civilizacional. Desde os primórdios da vida coletiva, o rito foi o instrumento pelo qual comunidades ordenaram o caos, celebraram a vida e legitimaram o poder. Mircea Eliade ensinou que todo rito é a reatualização de um tempo mítico, sagrado, que sustenta o mundo visível. Para Émile Durkheim, os ritos não apenas expressam a coesão social: eles a produzem, criando pertencimento por meio de gestos partilhados e carregados de sentido.
No entanto, a modernidade tardia vive uma crise do rito. Como alerta Byung-Chul Han, em O Desaparecimento dos Rituais: Uma Topologia do Presente, a sociedade da eficiência, da exposição permanente e da hiperconexão perdeu o gesto lento, solene, silencioso. Substituímos a comunhão pela comunicação, o sentido pelo dado, a celebração pela performance. E assim, aos poucos, a sociedade vai se tornando uma multidão solitária.
René Girard já havia mostrado que o rito nasceu para conter o caos – canalizar a violência, mediar o conflito, fundar a paz. Ao abandoná-lo, abrimos espaço para a desintegração do simbólico. Sem rito, não há memória. E, sem memória, não há futuro comum.
No campo político, vemos a transformação da liturgia da autoridade em espetáculo de poder. A posse, o juramento, o discurso solene — tudo cede lugar ao marketing instantâneo. Na família, o jantar se desfaz nas telas; o casamento, o luto e o batismo tornam-se eventos opcionais. O tempo se fragmenta e, com ele, o sentido da própria vida.
O conclave, nesse cenário, aparece como um lembrete incômodo e necessário. Lembrete de que o poder precisa de sacralidade; o tempo, de espessura; e a convivência, de linguagem simbólica. Não se trata de restaurar um mundo perdido, mas de compreender que nenhuma civilização subsiste sem os ritos que a sustentam.
Reaprender o valor dos gestos – públicos ou íntimos, políticos ou espirituais – pode ser um caminho não apenas para recuperar vínculos, mas para reencontrar a própria dignidade do humano.
*Leônidas de Oliveira - Doutor em Teoria da Arte e Arquitetura, arquiteto e Secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais
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