por Luiz Henrique Lima *
O Supremo Tribunal Federal é a mais alta Corte do Poder Judiciário brasileiro. Detém competências exclusivas de enorme importância. No entanto, seu poder é limitado e seus limites são os estabelecidos pela Constituição.
Como é ele, o STF, o guardião e intérprete maior da Constituição, é possível que se veja tentado a ampliar tais limites.
Vimos um exemplo há poucos dias. Discutia-se um singelo pedido de habeas corpus (124.306-RJ) para a libertação de proprietários de uma clínica de abortos clandestinos, sob a alegação de que os réus eram primários, tinham bons antecedentes etc. Em decisão surpreendente, um órgão fracionário, a primeira turma de julgamento do STF, entendeu que não mais haveria o crime de aborto, previsto no Código Penal, quando não houvesse transcorrido o primeiro trimestre da gestação. Utilizou-se a técnica jurídica da interpretação conforme a Constituição para criar mais uma hipótese de aborto legal, as outras sendo a de quando há risco de vida para a gestante e a de quando a gravidez é resultante de estupro.
Na prática, a decisão invadiu a seara do Poder Legislativo, como denunciou o ministro aposentado do próprio STF Eros Grau. Ademais, o controle de constitucionalidade é matéria reservada ao Plenário (art. 97 da Constituição) e a Súmula 10 do mesmo STF preceitua que viola a cláusula de reserva de plenário a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte. No caso, afastou-se a incidência do tipo penal previsto nos artigos 124 e 126 do Código Penal, bem como, embora não se tenha tido a ousadia de anunciá-lo, do art. 2º do Código Civil que dispõe que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. E, ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê o direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Assim, um simples habeas-corpus desmontou toda a legislação protetiva alicerçada no art. 5º da mesma Constituição da qual o Supremo é guardião, o qual assegura a inviolabilidade do direito à vida, e cujo inciso XLVII define como cláusula pétrea a inexistência de pena de morte.
A justificativa apresentada é a que se deve privilegiar a autonomia da mulher em seus direitos sexuais e reprodutivos e a sua integridade física e psíquica. A opção pelo prazo de três meses de gestação utiliza como parâmetro normas vigentes em outros países 'do mundo democrático e desenvolvido'.
Ora, a legislação estrangeira contém inúmeras normas inaceitáveis entre nós, como a monarquia (Japão, Espanha), a pena de morte (EUA), a minoridade penal (Inglaterra) etc. Diversos outros argumentos falaciosos foram apresentados, como o fato do Código Penal ser de 1940. Ora, muitas alterações foram feitas, pelos canais legislativos próprios, mas o que era homicídio ou latrocínio há 80 anos continua sendo o mesmo crime. E o voto causou perplexidade ao afirmar que o direito ao aborto propiciaria igualdade de gênero, uma vez que 'homens não engravidam'.
Além do que o ministro Eros Grau publicamente classificou como 'agressão à Constituição', a referida decisão ignora a ciência quando não reconhece que desde a primeira célula já se encontra definido o código genético do futuro ser humano. É óbvio que, até o momento do parto natural, aquele ser ainda se encontra em processo de formação para uma vida independente. Nem por isso, deixa de ser humano e estar vivo, portanto titular de direitos. Até mesmo ovos de répteis são protegidos pelas leis brasileiras e por programas governamentais, independentemente do tempo de gestação.
Suprema ironia é estarmos enfrentando esse tema na época do Natal, quando celebramos o nascimento de Jesus Cristo, sobrevivente do massacre de recém-nascidos determinado por Herodes. Aguarda-se do Pleno do STF a urgente correção do equívoco.
Luiz Henrique Lima é conselheiro substituto do TCE-MT