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Opinião Domingo, 13 de Julho de 2014, 18:30 - A | A

Domingo, 13 de Julho de 2014, 18h:30 - A | A

Opinião

A prostituição e a idade no crime de estupro de vulnerável

Com a franquia da liberdade sexual, com os meios de comunicação respirando e exibindo sexo, com a pobreza, outra leitura deve ser lançada sobre a conceituação da vulnerabilidade.

Migalhas

por Eudes Quintino de Oliveira Júnior e Pedro Bellentani Quintino de Oliveira*

O estupro de vulnerável, de acordo com a regra estabelecida pelo artigo 217-A do Código Penal, consiste na prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou contra pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

O Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu um réu condenado a cumprir a pena de oito anos de reclusão, por ter praticado o crime de estupro de vulnerável. O colegiado entendeu que dois fatores determinaram a improcedência da ação: quando há evidência que a vítima se dedica à prostituição; quando sua aparência física ou mental indicar, pelas circunstâncias que envolvem seu comportamento, que refoge da proteção legal, conforme se extrai do Acórdão:

Não se pode perder de vista que em determinadas ocasiões podemos encontrar menores de 14 anos que aparentam ter mais idade, mormente nos casos em que eles se dedicam à prostituição, usam substâncias entorpecentes e ingerem bebidas alcoólicas, pois em tais casos é evidente que não só a aparência física como também a mental desses menores se destoará do comumente notado em pessoas de tenra idade1.

O núcleo decisivo concluiu que a presunção de violência em crime de estupro de vulnerável é de caráter relativo, revestido da presunção juris tantum2 e, consequentemente, merece uma análise detalhada em cada caso. É uma decisão que certamente rompe as barreiras do estreito círculo do Código Penal e esbarra na interpretação que até então vinha sendo dada ao crime em questão, pois bate de frente com a conceituação tradicional de proteção à dignidade sexual da pessoa, principalmente aquela que reúne menos condições de discernimento e defesa. Nesse sentido a manifestação das Secretarias dos Direitos Humanos e de Políticas para as Mulheres3.

Mas, por outro lado, o Direito deve obrigatoriamente acompanhar os costumes sociais e incorporá-los à sua realidade, mediante a adequada interpretação. Já assinalava com o acerto costumeiro Maximiliano que exatamente por se formar pouco a pouco, à medida das exigências do momento e do meio, a exegese costumeira há de corresponder, melhor do que outra qualquer, às necessidades dos costumes. Produto exclusivo da evolução, merece todo acolhimento da ciência jurídica, hoje norteada pela Sociologia4.

Tanto é verdade que, com a franquia da liberdade sexual, com os meios de comunicação respirando e exibindo sexo, com a pobreza e o fácil comércio que se instala na vitrine instintiva do prazer sexual, outra leitura deve ser lançada sobre a conceituação da vulnerabilidade.

A lei, quando editada, tem um objetivo a cumprir. Se durante muito tempo as interpretações foram coincidentes, sem qualquer desvio da finalidade original, significa que vem realizando sua função social. É uma boa lei, segundo Aristóteles. No instante, porém, em que se depara com manifestações sociais que conflitam com as regras dos legisladores, o apego às palavras e a imobilização do Direito não se apresentam como o caminho mais seguro para atender as pendências emergentes do grupo social.

Não se defende a aplicação pura e simples do texto e sim que seja conferida a ele uma elasticidade interpretativa mais abrangente para se buscar o fim colimado, que é a adequação legal do fato de acordo com o bem social. A lei não é um instrumento pronto para ser aplicado de forma imediata, como uma vestimenta prêt-à-porter. Exige um estudo aprofundado, uma adequação acertada, pois é do atrito das realidades que se encontra a justiça, assim como do atrito das pedras brota o fogo.

Não quer dizer que doravante o menor ou a menor de 14 anos, idade que abriga a figura do estupro de pessoa vulnerável, conforme preceito do Código Penal, ficam totalmente desprotegidos e abre uma hiato de impunidade incorrigível. Se assim for, aplica-se inevitavelmente o summum jus, summa injuria.

O cerne da questão reside justamente em saber se a idade, por si só, é circunstância elementar indispensável para a caracterização do ilícito ou se há necessidade de se debruçar sobre o caso apresentado visando buscar elementos que demonstrem que, apesar da idade, a pessoa já tinha maturidade suficiente para se definir a respeito da prática sexual. A decisão do Tribunal de Justiça ora em comento, abandona o critério de idade e avança para uma interpretação mais elástica da restrita prescrição legal, chegando a perscrutar as condutas anteriores comprometedoras da vítima e, em razão delas, eliminar qualquer aresta de vulnerabilidade. Em outras palavras, não é pelo fato de contar as vítimas com menos de 14 anos que, por si só, configuraria o ilícito.

É certo que, no momento atual, em razão das radicais transformações dos costumes, é temeroso dizer que uma adolescente menor de 14 anos seja desconhecedora das práticas sexuais. Conhece sim e muitas vezes já vem exercendo com frequência, até mesmo em se prostituindo com a conivência dos pais para ajudar no sustento da casa. Sem falar ainda da compleição física avantajada que induz o agente ao erro com relação à idade. Mas, em Direito, cada caso é um caso e merece a atenção adequada pela forma que se apresenta.

É interessante observar que o Código Penal abrigava o crime de sedução em seu artigo 217 (revogado pela lei 11.106/2005) e um dos requisitos para a integração do tipo penal era o agente se aproveitar da inexperiência da vítima, mulher maior de 14 e menor de 18 anos. Caiu por terra justamente pela sua incompatibilidade com a realidade dos costumes e das novas condutas e práticas sexuais.

O Supremo Tribunal Federal já demarcou os limites de sua interpretação e vem entendendo que o consentimento da ofendida para a conjunção carnal e mesmo sua experiência anterior, não elidem a presunção de inocência para a caracterização do crime de estupro5. Apesar de que, em sentido contrário, ainda da mesma Corte Suprema, registra-se a decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio6.

*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

*Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie. Advogado, mestrando em Direito Civil pela Unesp/Franca.

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