A procuradora-geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, ingressou com Agravo Regimental, contra decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que em 18 de dezembro do ano passado, deferiu pedido do Partido dos Trabalhadores (PT) e proibiu a condução coercitiva de investigados para interrogatório em todo país.
No pedido, o PT argumentou que o interrogatório, em um sistema criminal compatível com o estado democrático de direito, não é tido como meio de prova mas meio de defesa, e permite ao acusado colaborar com a ação estatal ou manter silêncio para não se autoincriminar. Acrescenta que o direito de defesa, a liberdade e a dignidade da pessoa são ameaçados quando o acusado é posto na situação de fazer prova contra si.
Na decisão, o ministro Gilmar Mendes fundamentou que: “a condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer. O ministro esclareceu, ainda, que a decisão restringe-se às hipóteses de condução coercitiva de investigados ou indiciados para interrogatório, não sendo objeto de análise na ação a “condução de outras pessoas, como testemunhas, ou de investigados ou réus para atos diversos do interrogatório, como o reconhecimento, por exemplo.”
No entanto, Dodge recorreu da decisão, por entender que a realidade jurídica brasileira tem sido permeada pela decretação, por ordem judicial e independentemente de prévia intimação do conduzido, de conduções coercitivas de finalidade nitidamente cautelar, destinadas a assegurar o resultado útil de investigação ou da persecução penal em curso. “São conduções coercitivas decretadas por necessidade de garantir a aplicação da lei penal ou a efetividade da investigação ou instrução probatória (periculum libertatis), quando há fundados elementos probatórios da materialidade e da autoria delitivas (fumus bonis delicti)” citou.
Para a procuradora-geral da República, dever do Estado restaurar a ordem jurídica violada pela prática de crimes. “O Poder Judiciário deve fazê-lo por meios adequados e suficientes. Sob essa ótica, negar ao juiz criminal o poder de decretar medidas cautelares penais atípicas para proteger os bens que lhe cabe tutelar resulta em proteção deficiente destes mesmos bens, criando uma situação de inconstitucionalidade - por violação ao princípio da proporcionalidade em sua vertente positiva - que não se pode admitir” destacou.
Ainda, conforme Dodge, como as conduções coercitivas de natureza cautelar são medidas que limitam a liberdade de ir e vir do conduzido apenas por algumas horas, tão somente enquanto as finalidades cautelares que ensejaram a sua decretação são alcançadas, não parece razoável ou proporcional equipará-las às prisões cautelares. “As conduções não atingem a liberdade do conduzido a ponto de suprimi-la, como o fazem as prisões, mas, apenas, a ponto de limitá-las momentaneamente, como o fazem as medidas cautelares pessoais em geral. Por isso, considerá-las como sendo formas de prisão parece ser uma interpretação forçada e equivocada” reforçou.
No entendimento da procuradora-geral, vedar ao Estado o poder de conduzir coercitivamente, para interrogatório com fins de qualificação pessoal, investigados ou acusados que, intimados, recusem-se a fazê-lo, tem como consequência óbvia e indesejada a existência de investigações e processos penais movidos contra pessoas incertas, não plenamente individualizadas e identificadas, aumentando-se, por exemplo, o risco de o Estado exercer seu jus puniendi em face de homônimos ao verdadeiro investigado ou acusado.
“Como resultado, é possível se antever o aumento de processos penais inúteis ou frustrados, além do desperdício dos já escassos recursos materiais e humanos de que dispõe o Estado persecutor. Tudo isso em evidente e inaceitável prejuízo à correta aplicação da lei penal, comprometendo-se a efetividade da tutela penal” contestou.
Outro ponto destacado por Dodge é que permitir a condução coercitiva do investigado ou acusado para interrogatório, para proceder a sua qualificação pessoal, não representa, sob qualquer ótica, medida desarrazoada ou desproporcional, tampouco arbitrária do Estado.
“Em verdade, é medida que se presta a fim legítimo (possibilitar a identificação do conduzido), que não priva a liberdade do conduzido mas apenas a restringe por algumas horas (tempo necessário a realização do interrogatório), e que, conduzida corretamente, não ofende os direitos ao silêncio e à vedação da autoincriminação. Dessa forma, na exata medida em que vedar a condução coercitiva para o fim de qualificação pessoal compromete a efetividade da tutela penal e que permiti-la não representa excesso estatal, conclui-se que a condução coercitiva prevista no art. 260 do CPP não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência. O juiz criminal tem o poder para conduzir o investigado ou acusado ao interrogatório para fins sua qualificação pessoal, o que não equivale a tratá-lo como culpado, nem agir de modo excessivo ou arbitrário, pois há observância do devido processo legal” explicou.
Diante dos argumentos, a Procuradoria Geral da República pediu a reconsideração da decisão agravada, e, não havendo a reconsideração, o provimento do agravo regimental para reformar a decisão agravada, de modo a restabelecer a possibilidade de, em todo território nacional, serem decretadas e cumpridas conduções coercitivas: nos termos do artigo 260 do CPP, desde que para fins de se possibilitar a qualificação e completa identificação do investigado ou acusado; com finalidade cautelar na investigação ou na ação penal, independentemente de prévia intimação do conduzido, desde que observado o devido processo legal e pelo tempo estritamente necessário a cumprir as finalidades para as quais as mesmas foram decretadas.
“Durante qualquer modalidade de condução coercitiva, devem ser observados os direitos constitucionais ao silêncio, à vedação a autoincriminação, sendo, ainda, assegurado ao conduzido o direito de ser acompanhado por advogado de sua livre escolha” completou.