por Edina Araújo*
A declaração do governador Mauro Mendes de que "não é muito doloroso sair de Várzea Grande e vir para Cuiabá" para registrar um boletim de ocorrência por violência doméstica expõe, com uma frieza desconcertante, o abismo entre a retórica oficial e a realidade vivida pelas mulheres mato-grossenses. Mais que uma frase infeliz, se trata de um sintoma revelador de como o poder público encara – ou melhor, desconsidera – a urgência da proteção feminina no Estado. A declaração do governador foi dada na quinta-feira (25.09), em entrevista à imprensa, durante evento de assinatura de protocolo entre o Governo do Estado, Tribunal de Justiça e Ministério Público, que promete reforçar ações de prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher em Mato Grosso – uma ironia amarga que torna sua fala ainda mais desconcertante. Veja gráfico do número de feminicídio final do artigo.
Enquanto Mato Grosso se vangloria de investimentos bilionários em infraestrutura e ostenta a marca da "tolerância zero", 39 mulheres já foram assassinadas por feminicídio apenas neste ano – um número que deveria fazer qualquer gestor repensar suas prioridades orçamentárias. Mas não. Para o governador, contratar os "quase 700 delegados" necessários seria um "custo muito alto para a sociedade". Curiosa essa matemática humanitária que consegue calcular o valor da vida em planilhas de Excel.
A pergunta que fica é: qual seria o custo aceitável para evitar que mulheres em situação de vulnerabilidade tenham que escolher entre enfrentar uma ponte em plena madrugada ou permanecer em silêncio diante da violência? Aparentemente, esse cálculo não consta das avaliações técnicas mencionadas pelo governador.
A violência doméstica, como bem sabem as vítimas e os especialistas (mas aparentemente não o governador), não respeita horário comercial. Os dados são inequívocos: a maioria das agressões acontece em finais de semana, madrugadas e feriados – exatamente quando a Delegacia da Mulher de Várzea Grande permanece fechada. É nessas horas que a distância entre as duas cidades se torna não apenas física, mas simbólica da distância entre o poder público e quem mais precisa dele.
A Patrulha Maria da Penha, limitada ao horário comercial, representa outro paradoxo: um instrumento de proteção que funciona quando as mulheres menos precisam dele. Com 146 medidas protetivas ativas em Várzea Grande, segundo dados de agosto, a sobrecarga já é evidente. Mas para o governo, dois técnicos no plantão do monitoramento eletrônico são suficientes "porque a demanda pede dois". Uma lógica cartesiana que ignora a natureza urgente e imprevisível da violência de gênero.
A ponte que separa Várzea Grande de Cuiabá se tornou, nas palavras do governador, uma metáfora involuntária do fosso entre promessas e práticas. Para quem nunca precisou atravessar em estado de desespero, machucada, aterrorizada, com filhos pequenos ou sem dinheiro para o transporte, talvez realmente "não seja muito doloroso". Para as outras – as que importam nessa equação –, representa mais uma barreira em um sistema que deveria protegê-las.
Mato Grosso, que se orgulha de ser um gigante econômico nacional, consegue investir bilhões em obras de infraestrutura, mas tropeça na aritmética básica da proteção às mulheres. O Estado que movimenta fortunas no agronegócio e na mineração alega falta de recursos para manter uma delegacia 24 horas em sua segunda maior cidade. É uma escolha política disfarçada de impossibilidade técnica.
O verdadeiro custo alto para a sociedade não está em contratar delegados ou técnicos adicionais. Está nos 47 feminicídios de 2024, nas centenas de mulheres que sofrem em silêncio, nas crianças que crescem testemunhando violência, no recado institucional de que suas vidas valem menos que planilhas orçamentárias bem organizadas.
A "razoabilidade" invocada pelo governador soa razoável apenas para quem nunca enfrentou o dilema de escolher entre a própria segurança e a logística de chegar até ela. Razoável seria reconhecer que a violência contra a mulher é uma emergência de saúde pública que exige resposta à altura. Razoável seria admitir que um Estado com o PIB de Mato Grosso pode, sim, priorizar a vida de suas cidadãs.
Mais grave que a limitação orçamentária é a naturalização da precariedade no atendimento às mulheres. Quando um governador considera "não muito doloroso" que uma vítima de violência atravesse uma cidade inteira para buscar ajuda, ele está, na verdade, institucionalizando o descaso. Está dizendo que o Estado pode oferecer menos do que o mínimo quando se trata de proteger suas cidadãs mais vulneráveis.
As mulheres de Várzea Grande merecem mais que explicações técnicas sobre demanda e avaliações de custo-benefício. Merecem um poder público que entenda que seus gritos de socorro não podem esperar o horário comercial nem depender da boa vontade de atravessar pontes em busca de proteção.
Em um Estado que se vangloria de sua pujança econômica, a pergunta que fica é simples: se não agora, quando? Se não elas, quem? E se a resposta continuar sendo "não é muito doloroso", talvez seja hora de questionar para quem, exatamente, esse discurso é dirigido.
*Edina Araújo, jornalista e diretora do VGNOTICIAS e do Fatos de Brasília
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