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Opinião Quarta-feira, 26 de Novembro de 2014, 14:10 - A | A

Quarta-feira, 26 de Novembro de 2014, 14h:10 - A | A

Opinião

O juiz e a agente da Lei Seca

Aprendi nas minhas primeiras lições de antropologia que as estruturas podem mudar, mas é raro qualquer mudança ser uma transformação radical

g1.com

Aprendi nas minhas primeiras lições de antropologia que as estruturas podem mudar, mas é raro qualquer mudança ser uma transformação radical, como a de uma lagarta em borboleta. Mesmo se redefinindo, as estruturas sempre carregam na nova configuração algo da sua antiga forma.

Pois foi assim que entendi o caso ocorrido aqui bem perto da minha casa em 2011 e os seus desdobramentos dos últimos três anos.

Em uma noite de fevereiro de 2011, na rua Bartolomeu Mitre, no Leblon, um dos bairros mais ricos da cidade, uma jovem agente da Lei Seca Luciana Tamburini, de porte firme e estrutura rija, viu-se enredada, no exercício das suas funções, em uma trama que viveu até 2014 na mais perfeita solidão.

Naquela noite, os policiais que faziam uma blitz da Lei Seca pararam um carro  sem placa. Os policiais fizeram os procedimentos de praxe. O motorista estava sem a carteira de habilitação, mas no teste do bafômetro ficou provado que não ingerira álcool.

Em seguida duas versões se estabeleceram:

Como o carro e seu condutor trafegavam ilegalmente, os policiais aplicaram a multa devida e iam rebocar o veículo para o depósito, quando o motorista disse que era juiz de direito e que o carro não poderia ser levado. O jovem policial foi até a agente Luciana Tamburini, chefe da blitz, que prontamente disse ao militar: "Ele pode ser juiz, mas juiz não é Deus. Apreendam o carro".

O motorista, o juiz de direito João Carlos de Souza Corrêa, ouviu o que Luciana dissera e deu-lhe voz de prisão, exigindo que a mesma entrasse no carro da polícia para ser autuada na delegacia. A jovem recusou-se a cumprir a ordem do juiz, mas todos foram parar na delegacia. Esta é a versão de Luciana Tamburini, de acordo com as informações da imprensa.

Segundo o juiz João Carlos de Souza Corrêa, a agente o desrespeitara dizendo diretamente a ele que podia ser juiz, mas não era Deus. Fizeram o boletim de ocorrência, porém Luciana, não se conformando com a situação vexatória que o magistrado lhe havia infringido, moveu-lhe um processo.

O caso foi para o juizado de primeira instância, e a juíza Andrea Quintella condenou Luciana a pagar uma indenização de R$ 5 mil por danos morais ao juiz. Luciana recorreu da sentença e, na segunda instância, agora em novembro de 2014, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio ratificou a decisão da primeira instância, obrigando-a a pagar a multa. A sentença é em si mesma uma peça histórica. Aqui vai um trecho conforme divulgado pelo jornal O Globo na internet.

"(...) Não se olvide que apregoar que o réu era “juiz, mas não Deus”, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade. (...) Em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria magistratura e tudo o que ela representa. (...) Por outro lado, todo o imbróglio impôs, sim, ao réu, ofensas que reclamam compensação. Além disso, o fato de o recorrido se identificar como juiz de direito não caracteriza a chamada ‘carteirada’, conforme alega a apelante."

Mas algo inacreditável ocorreu. Com a divulgação do caso surgiu nas redes sociais uma "vaquinha" para arrecadar dinheiro para a multa ser paga. Quando a lista foi encerrada, havia cerca de R$ 40 mil.

Luciana não se intimidou e disse que iria recorrer aos tribunais superiores e até ao "tribunal de Deus". Agradecendo a solidariedade dos que fizeram a campanha, declarou que doaria a quantia alcançada para uma instituição de vítimas de desastre de trânsito, pois tinha certeza de que não seria penalizada.

O caso ainda não teve o seu desfecho, mas a Ordem dos Advogados o Brasil e o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) foram ouvidos pela imprensa. A OAB ficou de averiguar a conduta do juiz – que segundo dizem, cometeu outras arbitrariedades quando atuava em Búzios –, e o ministro Ricardo Lewandowski afirmou que juiz é um cidadão comum, mas não poderia fazer nenhum outro comentário porque o caso era concreto e poderia, no final de tudo, ser julgado pelo STF.

Será que este juiz é um caso excepcional, um caso particular que não afetará a crença na idoneidade dos nossos magistrados? Ou representa mesmo uma estrutura dominante na qual as ditas "autoridades", mesmo quando atuando como cidadãos comuns, exigem ser tratados como seres superiores e acima de qualquer suspeita?

Convenhamos, Luciana, uma cidadã brasileira, está lutando pelo direito de exercer sua função com dignidade e tem consciência de que o seu papel é de livrar a sociedade de milhares de mortes no trânsito.

O que significa a reação ao desmando da justiça tão singular em nossa sociedade?

Será que a estrutura do "você sabe com quem etá falando?", descrita e analisada por Roberto DaMatta, está mudando? A lagarta está virando borboleta, ou trata-se apenas de um surto momentâneo frente a tudo que temos de assistir calados, sem crítica e em silêncio e que vem ocorrendo no plano das mais altas esferas da política brasileira?

Tenho para mim que há mudanças no horizonte e juízes e autoridades devem botar as barbas de molho. A agente da Lei Seca representa uma parcela muito significativa de nossa sociedade que está farta de viver em silêncio e de receber "carteiradas".

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